Foto de Rafael Blasi
Por Patrick Pessoa
Diário do farol — Adaptação do romance de João Ubaldo Ribeiro, montagem dirigida por Fernando Philbert e protagonizada por Thelmo Fernandes retrata questões atuais em monólogo com múltiplas camadas
João Ubaldo Ribeiro (1941-2014) é inegavelmente um dos maiores romancistas brasileiros do século XX. “Viva o povo brasileiro”, sua grande obra, é leitura indispensável para entender a História do Brasil, desde o nosso passado marcado pela barbárie da violência colonialista até o nosso presente tristemente assombrado por uma mentalidade neocolonial. Curiosamente, pelas mãos do recentemente falecido Domingos Oliveira (1936-2019), Ubaldo, que nunca escreveu uma peça de teatro, vai se tornando também um de nossos maiores dramaturgos contemporâneos.
Depois da deliciosa adaptação feita por Domingos de “A casa dos budas ditosos”, monólogo protagonizado por Fernanda Torres, chega à cena “Diário do farol” , adaptação do romance de Ubaldo inspirada por Domingos, dirigida por Fernando Philbert e protagonizada por Thelmo Fernandes .
Em um cenário despojado , com plásticos opacos pendurados no teto que evocam as falésias da ilha na qual se retirou o protagonista (mas também a opacidade da maldade humana, nossa dificuldade de vê-la e compreendê-la), o narrador afirma que precisa satisfazer sua vaidade e que por isso vai contar sua história. Vivendo seus últimos dias isolado no farol que mandou construir para si, ele pretende lançar luz sobre as origens de sua própria maldade e sobre o modo como, dependendo das circunstâncias, qualquer um pretensamente poderia se transformar em uma “máquina de matar”.
A sobreposição entre uma história pessoal e a história recente do Brasil — “A ditadura militar”, diz o protagonista a certa altura, “parece ter sido implantada comigo em mente” — confere ao monólogo múltiplas camadas, tornando insustentáveis as visões redutoras que pensam o bem e o mal como características inatas. Trata-se, sem dúvida, de “uma peça sobre a maldade”, mas sobretudo de uma reflexão sobre o modo como um desejo de justiça a princípio justificável pode degringolar em uma apologia da tortura e do terrorismo de Estado.
Manipulando sagazmente a conhecida simpatia e a explícita bondade impressas na figura do ator Thelmo Fernandes, o trabalho joga o tempo todo com a possibilidade de nos identificarmos com ele e entendermos os seus motivos — a cena em que ele canta “My way” e convida o público a participar é emblemática desse “convite à comunhão” —, apesar da série de atrocidades que ele vai narrando com aquele distanciamento irônico característico de um outro grande canalha de nossa literatura, Brás Cubas.
Ubaldo, que se orgulhava de saber recitar trechos inteiros de Shakespeare em inglês, constrói o mito da origem de sua maldade a partir de uma paródia da cena do espectro no “Hamlet”. Depois que sua mãe morre em circunstâncias misteriosas e que seu pai se casa imediatamente com a cunhada, desrespeitando o tempo de luto, o narrador recebe a visita do fantasma de sua mãe, que exige vingança. Movido a princípio por esse legítimo desejo de se vingar de um pai que, além de matar a mãe, o oprimiu barbaramente a vida toda, o protagonista conta como, depois de se tornar padre por imposição do pai, valeu-se da batina para realizar as maiores perversidades, tornar-se um influente agente da repressão e finalmente, como Hamlet, cumprir o seu destino.
Findo o espetáculo, resta um travo amargo na boca dos espectadores. “Diário do farol” é um retrato mais atual do que nunca da mentalidade de homens que, movidos pelo ressentimento e o desejo de vingança, sentem-se autorizados a recusar o Estado de Direito e a abraçar a mais arcaica de todas as concepções de justiça: a justiça do “olho por olho, dente por dente”, do “bandido bom é bandido morto”, que instaura um ciclo interminável de crimes ao cabo do qual já não restará mais ninguém para contar a história.