Por Renato Mello
Para estancar o irromper do amargor na possibilidade de perder algo que considerava, em teoria, relevante na atual temporada teatral, interrompi minhas férias para assistir “Estes Fantasmas!” em seu último fim de semana de apresentação no Sesc Ginástico. Com meu atraso perde-se algumas das funções críticas na análise de um espetáculo, mas considero relevante deixar o registro do meritório trabalho realizado.
Trata-se da 2ª peça num projeto de trilogia do encenador Sergio Módena na investigação da obra do dramaturgo italiano Eduardo de Filippo, iniciada em 2013 com “A Arte da Comédia”.
“Estes Fantasmas!”, em sua história, segundo aponta sua própria sinopse oficial, o protagonista “Pasquale(Thelmo Fernandes) muda-se com sua esposa(Ana Velloso) para um antigo casarão que há anos é tido como mal-assombrado(repleto de histórias da tradição napolitana). Mas o que se sucede é uma série de acontecimentos que nada tem a ver com seres do outro mundo. No entanto, ele prefere acreditar que tudo o que ali acontece é obra do além, salva a si mesmo de sua iminente tragédia, porque se permite acreditar que o amante(Gustavo Wabner) de sua mulher é um fantasma que assombra sua nova casa e que lhe dá dinheiro de modo benevolente. O auge da ironia ocorre quando Pasquale convida o fantasma para permanecer em sua casa e também quando ele aceita seu dinheiro, pois é a única forma de Pasquale adquirir pequenas coisas para sua mulher, Maria, que tanto ama”.
No original “Questi Fantasmi!”, foi escrito em 1945, sob os primórdios de um novo raiar que despontava na sociedade italiana, com marcadas tipologias napolitanas em que as arquiteturas dramáticas do autor vasculha o aprofundamento das ações comportamentais do ser humano em suas fraquezas e paixões. Para isso, se utiliza de um tom farsesco para compor um mosaico que reflete uma fina observação do grotesco e patético de seus personagens, com artifícios que transparecem em suas fúrias e se aclaram de forma muito nítida nas cenas dos monólogos de Pasquale dirigidos ao imaterializado professor que reside à frente de sua sacada.
Sergio Módena distribui com adequação o tempo cênico no sentido de possibilitar uma absorção do redemoinho de histórias que o texto de Eduardo de Felippo lança à cena. Módena tem a sensibilidade justamente de deixar em aberto uma série de sutilezas, sem jamais apontar um caminho, mas municiando o espectador para que ele escolha seu próprio instrumento de observação naquilo que se oculta no espectro de seu protagonista, lançando questionamentos sobre os limites da conveniência de se deixar levar por um mundo paralelo à realidade. Mesmo nos momentos em que adquire uma tonalidade em que o vaudeville sobrepõe o trágico, essa abertura não permite o embaçamento das linhas mestras da proposta do autor pela maneira como permanecem disponibilizadas no arco narrativo as acentuações críticas.
O elenco é formado por Thelmo Fernandes, Gustavo Wabner, Alexandre Lino, Ana Velloso, Celso André eRodrigo Salvadoretti, com Stela Freitas como atriz convidada. Thelmo Fernandes tem a responsabilidade de nortear o espetáculo com o protagonista Pasquale Lojacono, realizando uma interpretação de altíssima capacidade técnica, utilizando com precisão seus recursos, principalmente a capacidade vocal, que não somente lhe permite encontrar a essência do homem napolitano, mas que expande com inteira adequação toda as intenções dramáticas e cômicas pela forma como dita um ritmo particular na sua prosódia, além de um interessante trabalho corporal. A questão da dualidade também é registrada com bastante nitidez em Rafaele, o porteiro perspicaz e algo matreiro, muito bem defendido por Alexandre Lino, ressaltando justamente toda uma tragédia oculta que existe na vida de Pasquale, que a ironia de Rafaele ajuda a desvendar. Considero Ana Velloso uma das artistas(seja como atriz ou criadora) mais interessantes e completas no nosso cenário teatral, daquelas que com um simples olhar consegue dizer tanto sobre o que se passa a sua volta nas mais diferentes vertentes, justamente o que mais uma vez realizou, tanto como Maria, a esposa de Pasquale, mas igualmente nos breves momentos que vive a filha do amante Alfredo, que mesmo sem dizer uma só palavra, praticamente define o caráter patético daquele momento crucial da história. Alfredo, o amante, é vivido por Gustavo Wabner, que tem uma atuação bem dimensionada na altura com que compõe as intenções do seu personagem, o que por certa medida é correto para evitar uma acentuação que poderia desestabilizar o enfoque principal da representação. Celso André é Gastone, com boa atuação e com acerto na inflexão utilizada. Rodrigo Salvadoretti tem um menor peso cênico em razão dos breves momentos de seus personagens, o carregador e o filho de Alfredo. Stela Freitas surge em uma cena, porém crucial na trama e muito bem desenhada na direção de Módena, na qual a atriz aproveita sua qualidade cômica para criar uma ambientação forte e que contribui positivamente para a história caminhar ao seu desenlace.
A cenografia de Doris Rollemberg pesa a ambientação para contextualizar a história no seu tempo histórico e geográfico, com móveis que personalizam a cena, assim como abre os espaços para o desenvolvimento dos aspectos do vaudeville com suas várias possibilidades de entradas e saídas, assim como aproveita o generoso espaço físico do Sesc Ginástico em sua total proporcionalidade, inclusive na elaboração das sacadas laterais.
Os figurinos de Mauro Leite apresentam com cortes e desenhos de muito bom gosto e notória qualidade, mas acima de tudo, vestem os personagens de acordo com a temporalidade da obra e seguida à risca pela proposta cênica de Sergio Módena.
Bela iluminação de Tomás Ribas, com destaque para as frestas de luz entrando pelas laterais, que sugere um ar lúgubre e de mofo num ambiente decadente.
O êxito artístico de “Estes Fantasmas!”, na minha opinião, se deve em boa parte ao perfeito entendimento com que Sergio Módena absorveu os pilares que sustentam o jogo teatral de Eduardo de Filippo, o que dito dessa forma pode parecer até óbvio, mas na prática sabemos que não é bem assim que costuma se dar as coisas. Igualmente cristaliza uma sequência de alguns anos de trabalhos impecáveis de Thelmo Fernandes.