Recentemente, Thelmo Fernandes protagonizou uma das cenas que mais comoveu o público em “Todo dia a mesma noite”. Na série que narra o incêndio na boate Kiss, disponível na Netflix, ele encarna um pai que descobre que a filha morreu na tragédia ao reconhecer o tênis dela num ginásio lotado de corpos.
Foi um trabalho que exigiu do ator uma “demanda emocional absurda”. E rendeu a pergunta que mais tem ouvido atualmente: “Como conseguiu encenar um acontecimento real tão pesado assim?”. Nem a preparação com a atriz e diretora Helena Varvaki deu conta de aplacar a descarga de energia sobre ele, que chegava em casa com a sensação de ter corrido uma maratona.
Com mais de três décadas de carreira, o ator de 56 anos segue afetando e se deixando afetar pelos personagens e contextos dos projetos com os quais se envolve. Agora, por exemplo, tem se sentido especialmente emocionado ao contribuir para jogar luz sobre a existência de Herbert de Souza em “Betinho – No fio da navalha”, série do Globoplay sobre o homem que foi símbolo do combate a fome no Brasil.
Especialmente porque Thelmo, que vive o jurista e ex-governador Nilo Batista, tem uma ligação particular com essa história. Assim como o sociólogo, que era hemofílico e teria contraído HIV após uma transfusão de sangue, o pai do ator precisa recorrer ao procedimento periodicamente por causa de uma displasia.
– Hoje, me sinto completamente seguro quando levo meu pai ao hospital. E devo isso ao Betinho. Fora o que ele fez pelo país com a campanha contra a fome. Quando penso que o Brasil produziu um cara como ele e analiso o que a gente viveu nos últimos quatro anos, com um governo que negou o problema da fome e o direito à saúde… – observa Thelmo.
Nos palcos, ele vem encenando espetáculos que mergulham na complexidade da existência humana. Os mais recentes foram “Diário do farol — Uma peça sobre a maldade”, baseado no livro de João Ubaldo Ribeiro, e “Dignidade”, pela qual está indicado aos prêmios Cesgranrio e APTR de melhor ator.
Texto do espanhol Ignasi Vidal, “Dignidade”, fala, principalmente, sobre ética. Em cena, Thelmo é um candidato a presidente, que debate com seu assessor e amigo (vivido por Claudio Gabriel) as entranhas da política.
– Pensando na questão da polarização, o curioso é que o pessoal mais à direita acha que estamos falando da esquerda, e os à esquerda, que falamos da direita. Um dia, fizemos um debate com a Malu Gaspar, que observou que era mesmo impossível tomar partido – diverte-se ele, que ficou próximo da jornalista depois que rodou “Eike – Tudo ou Nada”, filme inspirado em livro dela.
Outro trabalho inteiramente impactado pela realidade foi “Fim”, série baseada no livro homônimo de Fernanda Torres e dirigida por Andrucha Waddington, em que Thelmo é um dos protagonistas (Álvaro). Se a história, que gira em torno de um grupo de amigos, trata de finitude, a pandemia de Covid-19 fez os atores encararem aquele enredo de outra forma.
A equipe começou a rodar o projeto antes da crise sanitária, época em que passou por uma preparação que tratou de azeitar a interação dos atores para tornar mais crível a amizade retratada na ficção. Com o isolamento, as filmagens foram interrompidas. Quando pisaram novamente no set, os atores sorviam cada momento com a urgência de quem tinha sido privado dos encontros.
– Nossas relações se aprofundaram e a gente valorizou a amizade mais do que nunca.
Filho de um vendedor e taxista aposentado com uma professora de latim, Thelmo nasceu em Olaria e cresceu na Ilha do Governador. Era um tempo em que, mesmo frequentando teatro levado pelos pais, a carreira de ator nem chegava a passar por sua cabeça. Antes de se estabelecer na profissão, aliás, levou uma vida dupla, às vezes tripla.
Formou-se em informática, trabalhou como prestador de serviços em empresas e se virou como motorista auxiliar no táxi do pai. Atrás do volante, levou cantada, foi parar dentro de boca de fumo e até ameaçado de morte por um motorista nervosinho no trânsito. Histórias que ele carrega como inspiração no ofício de ator.
As primeiras experiências no teatro aconteceram ainda no colégio, mas a formação veio pela Martins Pena. No final da escola de teatro, formou um grupo com o diretor Sidney Cruz, emendou um curso com a cineasta Tizuka Yamasaki, quando conquistou sua primeira oportunidade na TV, um episódio do extinto programa “Você decide”. Em seguida, entrou mudo e saiu calado no filme “Fica comigo”, de Tizuka, com Antonio Fagundes.
A entrada na companhia Os Fodidos e Privilegiados foi um ponto de virada. Sob o comando de Antonio Abujamra, Thelmo entendeu a importância do estofo literário para a exercer a profissão (“O Abu dizia: ‘vocês são ótimos, só falta ler, aposto que não leem nada”, lembra Thelmo). Também foi uma observação do diretor que o fez compreender sutilezas na interpretação de seu primeiro protagonista na num espetáculo do grupo – Jõao Grilo de “O auto da compadecida”.
– Eu não acertava o tom do personagem, até que o Abu disse: ‘Sabe o que está faltando? É que o Grilo nunca sabe o que vai fazer’. Uma observação tão simples e óbvia, mas que mudou tudo para mim. Outra frase que eu amava do Abu era: “A vida é sua. Estrague-a como quiser”.
Em “Feliz Natal”, longa de Selton Mello, Thelmo percebeu que precisava controlar a ansiedade que sempre lhe fez roer as unhas até o sabugo. Ao observar a tranquiliddae com que o protagonista Leonardo Medeiros encarava as cenas de seu personagem complexo (“ele só fumava um cigarrinho e entrava em no set, sem sofrer ou enlouquecer”), passou a lidar de forma mais leve com o ofício.
– Nada contra, mas essa coisa do ator-processo, tipo Kendall Roy (personagem interpretado pelo ator Jeremy Strong, na série “Sucession”), não é comigo. Acho que dá para trabalhar de outra forma ‑ acredita ele, que está em preparação para a terceira temporada de “Arcanjo renegado” e acaba de rodar o longa de terror “Abraço de mãe”, dirigido pelo argentino Cristian Ponce.
Foram muitos papéis (incluindo Boni, em longa cobre Chacrinha, e Vinicius de Moraes no espetáculo “Tom e Vinicius”, com Marcelo Serrado). Mas, até hoje, Thelmo é lembrado nas ruas pelo policial que viveu em “Tropa de elite”. Se o filme foi sucesso nos anos 2007, Thelmo reconhece aspectos que fizeram alguns tacharem o filme de fascista aos olhos de hoje.
– O Capitão Nascimento acabou aparecendo como um grande herói. Na época, foi uma comoção, porque aquilo tudo era visto como uma salvação, a coisa do bandido bom é bandido morto… – analisa. – Acho que, de certa forma, não foi bom. Levou para um lugar que afastou do diálogo. A sociedade poderia ter feito uma discussão mais aprofundada, mas o filme levou para um radicalismo que talvez tenha desembocado mais rapidamente nessa situação que a gente passou. Mas hoje a gente consegue olhar com um olhar de reflexão e tentar mudar. Confio muito nessa geração nova, a do meu filho que vai fazer 16 anos. Eles têm uma visão transformadora.
Thelmo foi pai aos 40 anos. E assume que, hoje, se vê diante de várias problemáticas da masculinidade.
– Aprendo com meu filho, porque, criado no padrão machista, a gente escorrega… Uma vez, repeti com ele uma brincadeira que meu pai fazia comigo quando passava uma menina bonita na rua: “Olha lá, filho, a gatinha miau”. E ele: “Pai, se você fizer isso vou para o outro lado da rua”. Ele está certo, é desrespeitoso. – diz. – Mas sinto uma mudança. Naqueles grupos de Whatsapp com amigos do futebol, de faculdade, tem coisa que não dá mais. Além da pornografia explícita, em termos de papo mesmo. Essa história do Cuca, do Corinthians… Em outros tempos, falariam: “Ah, para com esse papinho, já foi”. Já foi não, tem que discutir mesmo, é importantíssimo.