Foto de Rafael Blasi
Por Wagner Corrêa de Araújo
DIÁRIO DO FAROL – UMA PEÇA SOBRE A MALDADE : OU, COMO NÃO SE DEVE CONFIAR EM NINGUÉM
O homem é o necessário câncer da terra, citação autoral de João Ubaldo Ribeiro no entremeio de uma narrativa romanesca que inspirou potencial versão dramatúrgica, por obra e graça de Fernando Philbert e Thelmo Fernandes sob o substantivo estímulo de Domingos de Oliveira.
Aqui sob a titulação de Diário do Farol- Uma Peça Sobre a Maldade onde, além de adaptadores, eles assumem respectivamente o papel direcional (Fernando Philbert) e a representação atoral (Thelmo Fernandes).
Para um investigativo e provocador espetáculo sobre a vassalagem humana ao mal no anonimato de um personagem com oficio sacerdotal, levado à força ao estágio religioso pela violenta insensatez de um pai e transmutado, assim, em protótipo da maldade tendo Lúcifer no altar.
E que se autodenomina como o portador da luz identificando-se com o Farol da ilha, lugar da sua vivência amarga de misantropo após transformar sua trajetória existencial em apanágio da maleficência, dos anos de seminário à missão colaboracionista ao regime militar de 64.
Sob as instâncias mais altas dos atos de radical crueldade com exercício do instinto assassino contra seus próprios familiares, e de parceria na tortura terminal nos calabouços da ditadura, capaz de vitimar sadicamente, instigado por feroz ciúme e desprezo, a única mulher (Maria Helena) a quem julgou amar e seu companheiro de ideário politico/guerrilheiro.
Atormentado pelo espectro de sua mãe morta em acidente falseado pelo marido para ficar com a cunhada, decide se vingar com atrocidades sanguinárias em todo seu circulo familiar, a começar da madrasta e de seus dois filhos, para culminar com o estrangulamento do pai, causa mor de seu ódio.
Completando um referencial que vai do pesadelo hamletiano, passando pela prática sadomasoquista, para convergir em artaudiana crueldade, temperada pelo pessimismo nihilista e por ferina nuance de maquiavelismo. Pontuado por acordes soturnos e ironico contraponto de leveza em canções vocais ao vivo, na precisa trilha sonora de Marcelo Alonso Neves.
Em paisagem cênica (Natália Lama) sugestionada por transparências plásticas em camadas, ressaltando climas entre o sinistro e o assombramento nos efeitos luminares (Vilmar Olos), sob recatada indumentária (outra vez Natália Lama) que veste, com falsa pureza, o ignóbil comportamental do protagonista solo (Thelmo Fernandes).
Este na pele de um psicopata ou de inimputável alienado mental? Ou apenas no disfarce de sagaz manipulador de emoções odiosas que exteriorizam os mais baixos instintos da condição humana sob o signo da maldade sem eira nem beiras?…
Na irreprimível performance de um dos mais lídimos representantes de uma safra de craques da recente geração de atores brasileiros – Thelmo Fernandes, sabendo como imprimir veemência e frieza aos contornos de seu papel. Conduzido por artesanal comando de Fernando Philbert que se expande em cena, domina e atrai a cumplicidade do público.
E ambos, enfim, guiados por luminosa chama de paixão e sólida técnica teatral com a missão de dar um necessário e urgente recado de alerta e pânico para tempos de perigosa expectativa à beira do abismo:
“De qualquer forma, é bom lembrar que, mesmo eu morto, alguém como eu sempre poderá estar perto de você”.